quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Conversas Vadias



Não, não é ao título do programa televisivo do saudosíssimo Prof. Agostinho da Silva a que quero aludir.
É antes, por oposição, por contraste, à forma burocrática e reguladíssima (sem alma e sem cor) que as conversas intelectuais (desde logo as dos artigos "avaliados"e afins) assumiram nos últimos anos. Não mais se pode investigar com paixão e sem plano, relógio de ponto e polícia de giro externo e, logo, interno.

Tenho que confessar que mesmo a ideia, que sugeri, de assegurarmos a regularidade deste blog, através de dias fixos de colaboração que nos imporíamos, já deveria ser tributária de contágio dessas mania. O que impõe regularidade? Porque não haveremos de ser irregulares, aqui, e até omissos?

Portanto, confesso que, depois sobretudo de um extraordinária intervenção do Prof. Doutor Jean Lauand, na cerimónia de entrega do título de Pesquisador Emérito do IJI, há dois dias, na ESDC, em São Paulo, convertido estou, definitivamente, à desordem e à vadiagem intelectual na linha dos melhores.

Ainda bem que não levamos a sério a regularidade. Cada um escreva como e quando lhe apetecer.

Assim o farei eu. E se não o fizermos, pode ser até que estejamos a fazer o melhor possível pela cultura, pela arte, pela civilização e pelo Ser: se estivermos criando, vivendo e sendo. Que são coisas que, livres de obrigação e avaliação, fazem imensa falta.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Uma outra Autarquia


Não quero deixar de enviar o meu postal (e exorto os co-autores a que também o façam, e indiquem os seus dias preferenciais, se possível), apesar da quarentena em que forçadamente estou. Por todas as limitações, limito-me a texto breve:

AUTARKEIA

Lá podes ser uma ilha
Numa pequena ínsula cristalizares
E receberes o correio
Uma vez por mês
Sem Internet, claro.

Lá podes ter a tua casa branca
Como uma colina na minúscula ilha
E crescer para dentro
Dentro dela

Lá podes cultivar
Tua solidão ao sol
E no teu exíguo jardim insular
Colher o vinho dos deuses
E a oliveira da paz

E na tua casinha branca
Branca e azul talvez
Podes receber-te principescamente a ti
E dar festas orgiásticas
Celebrando os mistérios
De seres apenas tu.

(na foto, gato mesmo grego)

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Cidadão ou Homo Sacer?


[Extracto de uma Conversa com Jovens num Círculo de Reflexão Teológica, Algures no Planeta Azul, no ano 2008 d.C.]

Um pensador desta contemporaneidade, de nome Giorgio Agamben [1], centrou os seus holofotes numa categoria de seres humanos chamada homo sacer.
Desde os primórdios da era cristã, pelo menos, que o Direito Romano dogmatizava esta componente social.
Tratava-se de uma categoria de homens qualificada algo bizarramente de «Homens Sagrados».
A estranheza reside nisto: são denominados sagrados, mas são relegados à condição de exclusão e banimento da sociedade, despidos de todos os direitos civis, podendo ser mortos por qualquer um.
O que lhes vale é não poderem ser objecto de sacrifício ritual, pois não valiam nada que merecesse ser sacrificado. São homens que cometeram um tão odioso crime que ultrapassaram a fasquia de uma certa punibilidade: podem ser mortos, mas não sacrificados, de acordo com os ritos estabelecidos.
Estamos em presença de seres biologicamente vivos, mas sócio-político-juridicamente embalsamados.
Na verdade, como entender os homens reduzidos à condição vegetativa de coisas com vida nos campos de concentração hitlerianos? Como ler a Noite de Cristal de 1938 e os progroms contra judeus?
Como entender os refugiados/deslocados de Darfour e os guetos e barracas que pelo mundo vão marcando presença?
Que espécie de cidadania é esta? Que espécies de direitos têm estes seres cujo único sonho é o de sobreviver?
Que tipos de direitos inalienáveis, inatos, naturais são esses (que embelezam textos como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 ou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948 ou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966 ou o Pacto Internacional de Direitos Económicos Sociais e Culturais, de 1966) de que são excluídos tantos e tantos seres humanos?
Que tipo de cidadania é esta que se congela no sem-abrigo e que persegue os sans-papier na Europa e os milhares de homens que desesperadamente tentam entrar (de canoas e outras frágeis embarcações) nas Canárias e paragens afins?
Aqui, um parêntesis, só para aventar a hipótese de esse fluxo migratório poder constituir um (re?)povoamento desses arquipélagos geograficamente africanos (a própria União Africana – que conheceu o dia no dealbar do 2.º Milénio – já colocou uma reivindicação a propósito, por exemplo, das Canárias, Açores, Madeira!).
Que cidadania é essa que considera alguns como não-sujeitos?
Que cidadania no espaço de confrontação entre o «Primeiro Mundo digitalizado» e o «”deserto do Real” do Terceiro Mundo» [2]?
Porquê cidadão de plenos direitos [3] e porquê homo sacer banido da comunidade política, se é de respeitar o princípio ético que manda amar o teu próximo?
Isto tudo a desenrolar-se num caldo de contemporaneidade em que muitos vivem o hoje (e hoje é a democracia liberal capitalista) como o fim da história [4] (segundo Francis Fukuyama) e outros enfatizam o choque das civilizações como o sinal dos nossos tempos (conforme professa Samuel P. Huntington).
KAFFT K.
[1] Giorgio Agamben, Homo Sacer, Stanford, CA, Stanford University Press, 1998.
[2] Na feliz expressão (tomada de empréstimo do filme Matrix, de 1999) de Slavoj Žižek (Bem-Vindo ao Deserto do Real, trad. do original Welcome to the Desert of the Real! – de 2002 -, Lisboa, Relógio d’Água Editores, 2006).
[3] Cidadania, recorde-se, que, num crescendo, se foi alargando a todos os súbditos [do império romano, por exemplo (romanos ou bárbaros), a partir do ano 212, com a Constituição Antonina ou Édito de caracala].
[4] Mais uma daquelas proclamações gloriosas e absolutistas que as esquinas caprichosas da História vão desmentindo, confirmando, desmentindo… até que o bom senso nos convença a delas fugirmos.