sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Dos livros caçados

Vai passando a espuma dos dias sobre o episódio da feira de Braga.
Mas o efeito do que lá se passou poderá pesar sobre todos aqueles que se exprimem livremente.
A exploração da livre expressão impõe que se toquem as fronteiras da heterodoxia.
Ser heterodoxo é, antes de mais, ser livre. E não se é livre onde se persegue a diferença.

Braga é uma cidade velha. Não digo antiga, digo mesmo velha.
Porque, para além da urbe que se construiu sobre as ruínas da Bracara, essa Augusta, existe em Braga uma mentalidade que não se usa.
Os patéticos polícias demonstraram uma boçalidade pouco urbana, própria de quem chegou tarde às coisas da cultura e da cidadania. Mas o seu pecado foi o da cedência. O pecado da cedência perante a pequenez videirinha da beatice mal resolvida.
Braga é um sítio onde se caçam livros, ocupação a qual vem no degrau anterior às grandes fogueiras das noites de cristal. Quem caça livros, queima livros. E como sabemos todos da história do século XX europeu, onde se queimam livros matam-se pessoas pelas suas ideias.
Em Braga ainda não se mataram pessoas... Mas o caminho está aberto. Persegue-se a diferença, silenciam-se ideias escritas, agora. Talvez um dia percebam que uma ideia não se mata enquanto existir num homem. E aí, estes mesmos talibans dos bons costumes e da moral (qual moral?) pública quererão matar o portador da ideia.

Cinco foram os exemplares, poderia ter sido apenas um.

Em Braga, trinta e tal anos depois de Abril, envergando a farda da mesma República Portuguesa, feita de todos os homens e mulheres, de todas as raças e crenças, que julgávamos libertada e na senda do progresso, fuzilou-se a liberdade de expressão.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

registo literário

Li recentemente o livro serve de base à exposição. Passo a transcrever o primeiro parágrafo d’ “o remorso de baltazar serapião”, da autoria de valter hugo mãe:
“a voz das mulheres estava sob a terra, vinha de caldeiras fundas onde só diabo e gente a arder tinham destino. a voz das mulheres, perigosa e burra, estava abaixo de mugido e atitude da nossa vaca, a sarga, como lhe chamávamos”.
Toda a história desfiada pelo correr do livro surge despojada de juízos de valor directos. O autor demite-se de o fazer, contando ao invés uma história com todas as suas faces, independentemente da reprovabilidade que pudessem suscitar. Não enche o leitor com convites à sua conversão moral, não caracteriza as personagens de modo a, indirecta embora concludentemente, levar o leitor a “simpatizar” com as mesmas ou, ao inverso, a “detestá-las”, não procura eufemisticamente descaracterizar a linguagem bruta (no sentido de não depurada) e directa do povo que parece verter a crua realidade em que tantas vezes subsiste.
É este, afinal, mais um dos registos possíveis da literatura. Que, se aparentemente nenhum fito visa, na verdade é também intervenção social. E, talvez por isso, conheça um maior eco nas reflexões de cada um. O leitor é mais autónomo, conforma o seu próprio juízo com uma liberdade diferente; o autor desprende-se de veicular as suas concretas considerações.
Trata-se, no entanto, de uma confronto que o autor já prevê no momento em que trabalha a obra. Sabendo a comunidade em que esta será publicada, pode prognosticar quais os efeitos que decorrerão da história que contará. E perante tal cenário opta por colocar uma nova realidade à frente do seu leitor – tantas vezes parece que ganhamos mais um olhar por cada livro que lemos –, para que compreenda uma certa realidade, e para que, perante a mesma, retire as suas próprias conclusões, ao invés de se oferecer os resultados advindos de uma dada reflexão sobre a realidade, para que quem o queira consuma.
Perante a profusão informativa em que nos vemos imersos, com o contínuo oferecimento de heróis e vilões para acarinhar ou lançar à fogueira, é este um registo que faz falta, e que tanto carinho merece no dia de hoje. Tomemo-lo como uma tese (a história, ou melhor, o quadro moral de Baltasar Serapião), façamos a antítese, tiremos a nossa síntese. Coisa pouco cultivada, em tempos pouco virados para a reflexão.
Coloco ainda mais duas citações, retiradas do capítulo três, um pouco ilustrativas da voz do narrador.
“ela haveria de sentir por mim amor, como às mulheres era competido, e viveria nessa ilusão, enganada na cabeça para me garantir a propriedade do corpo. invadirei a sua alma, pensava eu, como coisa de outro mundo a possuí-la de ideias para que nunca se desvie de mim por vontade ou por instinto, amando-me de completo sem hesitações ou repugnâncias. e assim me servirá vida toda, feliz e convencida de verdade”
“os sargas, a vivermos com uma vaca, mas nada de ter uma vaca para que nos trouxesse o leite, se era velha de mais, e nada para que nos aquecesse a casa, se o aldegundes limpava o esterco constantemente e entre a porta e a janela os buracos ventavam o mais que se imaginasse, arrefecidos de interior. era uma vaca como animal doméstico, mais do que isso, era a sarga, nosso nome, velha e magra, como uma avó antiga que tivéssemos para deixar morrer com o tempo que deus lhe desse.”

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Vencidos da Vida, hoje?


Aqui vai uma reflexão teórica, que se coloca à apreciação dos leitores, sugerida pela foto supra.

Há uma mudança de paradigma (e não o digo como banalidade ou moda) na apreciação do legado dos intelectuais.
Pergunto-me se algum grupo como o dos "Vencidos da Vida" poderia sequer alcançar eco de existência futura (histórica) numa sociedade como aquela (efémera e mediática) em que nos enclausuramos. Os "Vencidos da Vida" de ontem foram, na verdade, triunfadores. Hoje um grupo, mesmo "jantante", que lhes fosse idêntico seria, definitivamente, votado ao mais completo silêncio. Tal encerra uma lição relativamente às formas de actuação política (em geral). Por exemplo, quando ontem abandonar um cargo era nobre, denotava desapego ao poder, hoje até qualquer carimbo na mão de burocrata nem depois de morto se larga (e não pela rigidez cadavérica). Porquê? Porque hoje, desgraçadamente, as pessoas são apenas o pedestal, o cargo, o dinheiro em que se empoleiram. Não importa a sua estatura real, mas a que alcança artificialmente. E logo vem a questão: se são estes os dados do jogo, hoje, como jogar outro jogo? Está em discussão, mas a alternativa parece-me ser: ou entrar no jogo, ou sair definitivamente dele - num qualquer movimento de reclusão e saída do "mundo"... Haverá uma "terceira via"?