terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Cidadão ou Homo Sacer?


[Extracto de uma Conversa com Jovens num Círculo de Reflexão Teológica, Algures no Planeta Azul, no ano 2008 d.C.]

Um pensador desta contemporaneidade, de nome Giorgio Agamben [1], centrou os seus holofotes numa categoria de seres humanos chamada homo sacer.
Desde os primórdios da era cristã, pelo menos, que o Direito Romano dogmatizava esta componente social.
Tratava-se de uma categoria de homens qualificada algo bizarramente de «Homens Sagrados».
A estranheza reside nisto: são denominados sagrados, mas são relegados à condição de exclusão e banimento da sociedade, despidos de todos os direitos civis, podendo ser mortos por qualquer um.
O que lhes vale é não poderem ser objecto de sacrifício ritual, pois não valiam nada que merecesse ser sacrificado. São homens que cometeram um tão odioso crime que ultrapassaram a fasquia de uma certa punibilidade: podem ser mortos, mas não sacrificados, de acordo com os ritos estabelecidos.
Estamos em presença de seres biologicamente vivos, mas sócio-político-juridicamente embalsamados.
Na verdade, como entender os homens reduzidos à condição vegetativa de coisas com vida nos campos de concentração hitlerianos? Como ler a Noite de Cristal de 1938 e os progroms contra judeus?
Como entender os refugiados/deslocados de Darfour e os guetos e barracas que pelo mundo vão marcando presença?
Que espécie de cidadania é esta? Que espécies de direitos têm estes seres cujo único sonho é o de sobreviver?
Que tipos de direitos inalienáveis, inatos, naturais são esses (que embelezam textos como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 ou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948 ou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966 ou o Pacto Internacional de Direitos Económicos Sociais e Culturais, de 1966) de que são excluídos tantos e tantos seres humanos?
Que tipo de cidadania é esta que se congela no sem-abrigo e que persegue os sans-papier na Europa e os milhares de homens que desesperadamente tentam entrar (de canoas e outras frágeis embarcações) nas Canárias e paragens afins?
Aqui, um parêntesis, só para aventar a hipótese de esse fluxo migratório poder constituir um (re?)povoamento desses arquipélagos geograficamente africanos (a própria União Africana – que conheceu o dia no dealbar do 2.º Milénio – já colocou uma reivindicação a propósito, por exemplo, das Canárias, Açores, Madeira!).
Que cidadania é essa que considera alguns como não-sujeitos?
Que cidadania no espaço de confrontação entre o «Primeiro Mundo digitalizado» e o «”deserto do Real” do Terceiro Mundo» [2]?
Porquê cidadão de plenos direitos [3] e porquê homo sacer banido da comunidade política, se é de respeitar o princípio ético que manda amar o teu próximo?
Isto tudo a desenrolar-se num caldo de contemporaneidade em que muitos vivem o hoje (e hoje é a democracia liberal capitalista) como o fim da história [4] (segundo Francis Fukuyama) e outros enfatizam o choque das civilizações como o sinal dos nossos tempos (conforme professa Samuel P. Huntington).
KAFFT K.
[1] Giorgio Agamben, Homo Sacer, Stanford, CA, Stanford University Press, 1998.
[2] Na feliz expressão (tomada de empréstimo do filme Matrix, de 1999) de Slavoj Žižek (Bem-Vindo ao Deserto do Real, trad. do original Welcome to the Desert of the Real! – de 2002 -, Lisboa, Relógio d’Água Editores, 2006).
[3] Cidadania, recorde-se, que, num crescendo, se foi alargando a todos os súbditos [do império romano, por exemplo (romanos ou bárbaros), a partir do ano 212, com a Constituição Antonina ou Édito de caracala].
[4] Mais uma daquelas proclamações gloriosas e absolutistas que as esquinas caprichosas da História vão desmentindo, confirmando, desmentindo… até que o bom senso nos convença a delas fugirmos.

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